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O mistério de Luzia
O mistério de Luzia

Minha bisavó  materna, Luzia Cesarana Tigani, aos 20 e poucos anos, morando no Brasil desde que aqui chegou em 1889 , residia  no interior de São Paulo e  tinha à época três filhos e o marido a que ela apelidara de " o calabrês"..Era uma mulher corpulenta, de ancas largas( herança passada a todas as mulheres da família Tigani), olhos azuis, italiana brava  e de temperamento sanguíneo (alguma semelhança minha com ela não é mera coincidência).Nasceu em Trieste, que à época, fins do século XIX  já pertencia à Itália  , alí do norte.

    Vó Luzia, como a chamávamos, era casada com um homem que gastava tudo em jogo , e que ia vendendo seus cavalos para pagar as dívidas das jogatinas  perdidas. Certo dia ela avisou  ao meu bisavô calabrês ( primeiro e último aviso por sinal , e herdei  também isso  dela, não avisamos muitas vezes,  uma vez só já  está de bom tamanho  ,depois  disso é  ação pura!), que se ele vendesse o último cavalo, ela sairia de casa levando seus  três  filhos pequenos .

    Muda  a cena e vejo - a chegando à Capital , vinda de trem , à procura de serviço ,  carregando um filho pequeno no colo , a mala e seus  dois outros meninos ,de calças curtas .Largou o " calabrês" e seus vícios em pleno início do século XX  e foi  cuidar da sua  vida e de seus meninos .Era por volta de 1915 mais ou menos , o Brasil era então  governado por Wenceslau Brás , nono Presidente da República brasileira, eleito em substituição a Hermes da Fonseca como candidato de consenso entre as elites paulistas e mineiras, que estavam alinhadas no Partido Republicano Paulista e no Partido Republicano Mineiro. Venceslau Brás era mais um dos presidentes da política do café com leite, característica da República Velha.

     Nessa época , nossa bisavó  empregou- se como governanta na casa de um padre e alí trabalhou muitos anos ,criando os filhos e mais tarde abrindo uma pensão na Alameda Glete, bairro  da Barra Funda,em São Paulo.Como era exímia cozinheira, recebia em seu estabelecimento muitos  comerciantes e políticos que vinham do interior a trabalho , buscando  acomodação confortável  e comida  boa .

    O destaque de seus dotes culinários ficava para  o nhoque à Bolonhesa, feito com pura batata e pouca farinha , a leitoa que aprendera  a fazer à pururuca em terras brasileiras e a uma sobremesa que ela mesma inventara e  denominava "Montanha Russa"( uma espécie de pavê ítalo- brasileiro  à base de bananas caramelizadas, com.creme de baunilha não muito doce, goiabada  em pasta e suspiros )que eu adorava .

      Minha mãe, sua neta única , já casada , pedia todo ano que Vó Luzia fizesse a leitoa ,deliciosa,  temperada em vinha d'alhos na antevéspera, assada pacientemente por horas e com um segredinho nunca revelado para que sua pele " pururucasse", ou seja, ficasse daquele jeito crocante .Tentávamos adivinhar a técnica que ela usava , mas nunca soubemos ao certo .Tinha alí um  certo mistério à italiana .

    A fartura  era grande à mesa de nossos pais , apesar da economia não ser favorável  aos brasileiros , em plena ditadura militar : no natal trazíamos  a bisavó Luzia para fazer as delícias ,entre elas a famosa leitoa .

   Como já disse, a " italiana" não era de temperamento fácil,  ( e aí devo admitir que também  herdei  dela essa  característica , o sangue  que corre fervendo   em nossas veias ), a enérgica e  brava italiana  que  quando  contrariada , pegava suas coisas e " dava no pé", e  nada a impedia, era de fato  uma mulher  livre, muito à frente de seu tempo, com dinheiro guardado sempre, prevenida , elegante, vaidosa, mesmo quando vestia o avental para espalhar a farinha na mesa com suas mãos ágeis ,para fazer o nhoque .Minha mãe  no Natal já nos avisava antes  :" não contrariem a vovó senão  ela pega as coisas dela e vai embora e não faz a leitoa" .

    Nas minhas férias escolares , eu por volta de meus 9 anos, pedia para ficar com minha bisavó na casa dela . Além dos paparicos culinários que ela me fazia, e do banho que ela me obrigava a  tomar com sabonete Palmolive verde com um toque de óleo de oliva  ,seu preferido, a bisavó era ótima contadora de histórias  repletas de religiosidade  católica , principalmente sobre a vida de Santa Isabel e Santa Luzia, a padroeira da visão , cuja imagem me impressionava muito  pelos  seus próprios olhos que ela  carregava numa bandejinha ( algo cirúrgico e insólito ao mesmo tempo).

     Eu já estudava medicina quando a  bisavó Luzia  morreu  aos 97 anos, deixando formados os três filhos : um advogado, outro militar e outro dono de " tipografia" e músico com  sua banda de jazz. Fiquei arrasada ao saber de sua morte pois  de fato eu  a amava muito, e admirava sua coragem , sua personalidade forte, e me identificava com sua " italianice"

      Durante muitos e muitos anos a leitoa continuava presente em nossa mesa de natal , minha mãe tentava fazê-la  mas nunca mais foi a mesma  , não ficava  crocante ,  não tinha o  toque de Luzia , era apenas uma carne gorda sem graça e com  a pele " borrachuda" .

     Já com doença de Parkinson, minha mãe sem condições de cozinhar, pedia que trouxessemos a  leitoa , e tentávamos sempre comprar a melhor , a mais fresca , super bem temperada  mas nunca mais pururuca...

    Minha mãe partiu há 1 ano e meio e no primeiro Natal da Pandemia, sem  sua presença marcante , evitamos pela primeira vez colocarmos leitoa no cardápio , em respeito ao meu pai ..É como se com sua morte , essa tradição mineira com toque à  " italiana" não tivesse para nós  mais sentido .

    Ontem estava eu pegando minhas encomendas de natal para o jantar de hoje, quando uma senhorinha de seus 70 e poucos anos ao meu lado , enquanto aguardava , sorriu- me e disse :" olhe só, pedimos  quase o mesmo cardápio" , referindo - se à carne , massa, farofa ,salpicão e outras delícias  . A  única diferença , continuou ela, é que tenho um pai muito  velhinho e para ele não deixamos  nunca faltar o que ele mais gosta .E dirigindo- se a balconista pediu " não esqueça o que encomendei  para meu pai" ..A vendedora então trouxe  a iguaria  já assada, uma " meia" leitoa, de 5 kilos , com um cheiro maravilhoso  e sobretudo pururuca ! Por uns instantes lembrei- me de Vó Luzia , de minha mãe  e da tradição culinária que contém nossas memórias afetivas e culturais  e que não devíamos deixar morrer nunca .

     Ano que vem , se me for permitido, ressuscitarei a leitoa,  tradição dos Tigani e agora já  sei onde encontra-la  crocante , com um toque do mistério de Luzia .

    
             Marcia Tigani
MARCIA TIGANI
Enviado por MARCIA TIGANI em 24/12/2021
Alterado em 11/01/2022


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Imagem de cabeçalho: jenniferphoon/flickr